Trabalho & Produtividade.
Os dicionários comuns costumam dar “voluntário” e “espontâneo” como sinônimos. Mas estes conceitos são antagônicos. Voluntário significa o que se pode optar por fazer ou não. Espontâneo é o que se faz sem intervenção da vontade.
O termo “voluntário” (lat. voluntarìus,a,um) tem raiz no conceito grego de proaíresis[i]: o que cada um se decide a fazer. Está relacionado à faculdade intelectiva. Toca aos sentimentos, aos estímulos que despertam, desencadeiam e dirigem ações deliberadas. O trabalho voluntário compreende o desejo racional e o racionalizado. Liga-se à experiência e à cultura, à aprendizagem colhida no meio circundante. Gera uma inclinação desejada e dirigida a um objeto determinado.
O termo espontâneo (lat. spontanèus,a,um) tem raiz no indo-europeu *(s)pen[ii]: puxar para si, e no conceito grego de boúlesis[iii]: um desejo que não obedece a razão. Está relacionado com o instinto, o mecanismo nervoso dos animais. Refere às sensações, aos estímulos que despertam, desencadeiam e dirigem respostas automáticas. O trabalho espontâneo concerne à ação reflexa. É fruto de uma tensão psicossomática, uma pulsão freudiana[iv], um impulso não querido ou dirigido a um objeto determinado.
O trabalho voluntário e o trabalho espontâneo têm em comum o não serem resultantes de um constrangimento exterior. Diferem, por serem, o voluntário resultado de incitação intelectiva, o espontâneo o resultado de uma incitação não refletida.
O elemento em comum faculta o trabalho voluntário e o espontâneo sejam dispostos em um mesmo contínuo de produtividade / eticidade[v].
Esta partilha dos dois conceitos implica muitas vezes em uma imputação equivoca da razão entre produto e esforço. Atribui-se maior produtividade ao trabalho voluntário. Mas não é assim. O trabalho espontâneo, aquele que se realiza por impulso, é o que, de fato, é mais produtivo. Entre os dois está o trabalho obrigatório, aquele que se exerce por necessidade ou receio. Explica-se por este desvio elementar de conceitos a fragilidade das teorias e a pouca eficácia das práticas de indução à produtividade laboral.
No plano da moralidade, as implicações são inversas. O trabalho voluntário é eticamente superior ao espontâneo. Corresponde a uma escolha moral, a uma decisão de servir a uma causa, a um grupo, a um ideal. Já trabalhar espontaneamente corresponde a satisfazer uma necessidade, a uma exigência não controlável, que não foi solicitada pela inteligência.
A medida ética do trabalho, diferentemente da medida da produção, é uma qualidade não constante, não escalar. Mas, qualquer que seja o grau que se lhe queira atribuir, há um contínuo que nasce do espontâneo, passa pelo obrigatório e alcança o ápice na ação voluntária. Os graus de produtividade percorrem o mesmo contínuo, mas no sentido inverso, do voluntário, ao espontâneo.
Escolio
O voluntário, o agir por sentimento ou intelecção, corresponde à atitude do sacrifício da vida material em favor da comunidade. A vontade que anima o voluntariado não é a de fazer, mas a de servir.
O espontâneo, o agir excitado instintivamente (lat. In stinguere – atiçar com um espeto), corresponde à atitude do altruísta doentio, que entrega bens e vida a todos, exceto a si mesmo, e às custas de si mesmo. Não há um instinto ou uma pulsão a trabalhar, mas a agir.
O ponto é claro, mas não é pacífico. A separação entre os dois conceitos tem sido objeto de discussão desde a Antiguidade[vi]. Schopenhauer[vii], por exemplo, que centrou a sua filosofia no conceito de vontade, a opõe à intelecção. A vontade teria analogias com as tendências irracionais.
A psicologia e a etologia contemporâneas, tendo em conta que o instintivo parece ser cada vez mais afetado pela aprendizagem à medida em se ascende na escala zoológica, fazem uma ponte entre os conceitos. Admitem que as representações e as funções intelectuais estão subordinadas às representações e funções afetivas e ativas do espírito.
Já na área médica, entende-se que a vontade teria como objeto resolver o conflito entre o fim da ação e os meios, que dependem da inteligência[viii] (os atos voluntários e os atos espontâneos do corpo humano, como a deglutição) e da psique[ix] (a significação das emoções nos movimentos espontâneos e voluntários da face).
Estas discussões são relevantes unicamente dos pontos de vista metafísico e científico. A maioria dos contemporâneos, tanto na esfera da filosofia, como no vasto campo das ciências sócio-humanas, ressalta o atributo finalístico e intelectivo do voluntário, contrastando-o com o irreprimível e o fortuito do espontâneo.
UTILIZE E CITE A FONTE.
[i] Aristóteles, Ética a Nicomano, III, II, 9, in, The works of Aristotle (1952). United Kingdom. Encyclopaedia Britannica Inc. [ii] Ayto (1990). Dictionary of word origins. New York. Arcade Publishing [iii] Platão, Leis. III, 687, in Platon (1981). Obras completas. Traducción y notas de María Araujo et alli. Madrid. Aguilar S.A. de Ediciones. [iv] Freud, Sigismund (19 7).Trois essais sur la théorie de la sexualité. Paris, Gallimard [v] Cherques, Hermano Roberto Thiry (2004). Sobreviver ao trabalho. Rio de Janeiro: Editora FGV. [vi] Aristóteles, Ética a Nicomano, III, 3, in, The works of Aristotle (1952). United Kingdom. Encyclopaedia Britannica Inc. [vii] Schopenhauer, Arthur (2005) O Mundo como Vontade e Representação. Trad. Jair Barboza. São Paulo: Unesp [viii] Ertekin Can (2011) Voluntary versus spontaneous swallowing in man. Dysphagia. 2011 Jun;26(2):183-92. doi: 10.1007/s00455-010-9319-8. Epub 2010 Dec 15. [ix] Berenbaum, Howard & Ann Rotter (1992). The relationship between spontaneous facial expressions of emotion and voluntary control of facial muscles. In, Journal of Nonverbal Behavior. Volume 16, Issue 3, pp 179–190. September 1992.