Ética.
No “Discurso sobre a dignidade do homem”, Pico della Mirandola (1463-1494) comentou o pecado de se fingir a prática das virtudes. Para a caracterizar, arrolou os vícios correlatos: a ignorância, a tristeza, a inconstância, a avareza, a injustiça, a luxúria, a inveja, a traição, a raiva e a malícia. Mas não colocou como viciosa a destreza do homem na sua capacidade de dissimulação e hipocrisia. Endossou a conduta camaleônica, recomendada por seu patrício e contemporâneo Maquiavel (1469-1527).
O argumento maquiavélico era o de que, uma vez que a maneira como se vive não é aquela como se deveria viver, não é essencial possuir as virtudes, nem prudente fingir ostensivamente tê-las. É necessário apenas deixar parecer possuí-las.
Ambos florentinos anteciparam o utilitarismo pragmático, que não advoga a farsa, mas declara que a medida moral não é nem a da intenção, nem a que se manifesta, mas a da consequência dos atos.
O silêncio contemporâneo sobre a conveniência do embuste assinala a degeneração das relações intersubjetivas. A iniquidade do subterfúgio nos relacionamentos socioeconômicos é de tal forma corrente, que tornou sem efeito, pelo desinteresse e repetição, a sua narrativa.
Mas há uma diferença essencial entre o que hoje se passa e a perspectiva dos renascentistas:
O fenômeno da hipocrisia conveniente, que entre nós é epidêmico e cultural, para Mirandola, como para Maquiavel, fora preventivo. Conta uma lenda que o acautelamento estava tão entranhado neste último que, na hora de sua morte, instado a execrar o Demônio e sua Obra, teria dito: “essa não é uma boa hora para fazer inimigos”.