Epistemologia

Todos recordamos que Caim matou Abel e que, castigado pelo Senhor, foi condenado a vagar pela Terra. Mas esquecemos – ou nos fizeram esquecer – a razão da ira de Caim. Pois ela procedeu de que o Senhor havia se agradado da oferenda de Abel das “primícias do seu rebanho” e rejeitado a oferta dos “frutos do campo” de Caim (Gen. 4.3-5).
Por que nos lembramos dos efeitos e esquecemos das causas? A razão é simples. Há tantos fatos passados, tantas articulações entre eles, que só recordamos daqueles que nos vêm espontaneamente à memória. Não lembramos o que é difícil de entender ou o que não faz sentido.
Até os anos 1990, as neurociências davam como certo que estimássemos a frequência e a probabilidade de um fato ou de um evento unicamente pela facilidade com que vêm à memória. Opinamos, por exemplo, que existem mais palavras iniciadas com a letra “r” do que palavras que tem “r” com terceira letra.
Recentemente se verificou que não é só isso.
Vários estudos, o principal sendo o de Schwarz, mostraram que o argumento da facilidade era, não falso, mas incompleto. A frequência e probabilidade da lembrança é função, também, do conteúdo. Mais. O conteúdo prevalece como determinante para humores, emoções e estados do corpo e do espírito. O assassinato de Abel impressiona mais à consciência do que os motivos de Caim.
Recordamos dos eventos e dos objetos que nos inculcaram na memória ou para os quais inventamos um sentido pelo mesmo motivo que cremos em divindades ou que acolhemos seus desígnios: a aversão ao fortuito e ao incompreensível.
Essa senda da comodidade intelectual nos faz recusar o desconhecido e o novo. Bloqueia a disponibilidade heurística.
Nada, a não ser o freio da cultura aprendida e o respeito às tradições, impede que entendamos a história bíblica como o desejo freudiano de Caim matar o Pai e não o irmão. Ou que, anacronicamente, o Senhor, o Deus único do Livros judaico, cristão e muçulmano, recusa a oferenda de Caim porque é contra os vegetarianos.
A mente livre pode interpretar a história, a tradição e o estabelecido como quiser – de outra forma não seria livre. No entanto, tolhido pelo historicismo, pelas tradições e pelas vivências pessoais, o espírito servil rescinde ante o difícil e o disparatado. Ocupa-se em acomodar os contrassensos e as irrelevâncias até os aceitar como razoáveis e cruciais, ou, simplesmente, apaga-las da memória.
UTILIZE E CITE A FONTE.
CHERQUES, Hermano Roberto Thiry, 2020 – O tempo e o lugar do ato heurístico. – A Ponte: pensar o trabalho, o trabalho de pensar – https://hermanoprojetos.com/2020/12/23/heuristica-a-memoria-como-estorvo/