Perplexidades.

Quando agimos, agimos agora. Também quando pensamos, pensamos agora. Parece óbvio que em atos e pensamentos estamos sós e em um tempo instantâneo; no presente da recordação e da antecipação. No entanto, Hegel e depois, Marx – e a partir deles, o século e meio seguinte – negaram validade a essa evidência. Atribuíram à História o sentido das ações presentes dos povos. Sonharam com indivíduos submissos a uma consciência temporal e coletiva.
Custou tempo, esforço e coragem para que se admitisse que a História não faz sentido, ou melhor, faz o sentido que lhe quisermos dar. Tardou para que, a partir de Husserl, a filosofia, a psicologia e as neurociências convergissem para o entendimento de que o que rege a nossa consciência não são os eventos do passado, mas a lembrança que temos deles: a nossa memória.
A memória não é um sistema de estocagem, mas uma forma de uso da razão. Como tal é falha, é partidária, é seletiva. E pode ser violada, como sabem os políticos, os advogados e os psicólogos. Essas as razões de que as consciências do século passado se vissem implicadas em uma responsabilidade de ajustamento dos fatos a posteriori. No caso, digamos, mas à direita da reflexão, inventaram uma memória do que não aconteceu. No caso mais à esquerda, emprestaram relevância indevida a acontecimentos que encaixavam belamente em estruturas arbitrárias.
A memória é o teatro do passado, não o instrumento para o explorar. É o meio das vivências, como o solo é o meio em que cidades mortas jazem enterradas. Paul Ricœur explicou que há memória sem haver história. A memória visa a fidelidade ao vivido, a história a constância dos fatos. Uma é orgânica. A outra mecânica. Nenhuma das duas é verdadeira.
Texto excelente, inspirador. Parabéns.
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